Tuesday, February 14, 2006

FANÁTICOS SEM FRONTEIRAS

FANÁTICOS SEM FRONTEIRAS
PARA O FILÓSOFO ALAIN FINKIELKRAUT, PROTESTOS CONTRA A PUBLICAÇÃO DAS
CHARGES REPRESENTAM UM CLARO DESPREZO PELAS CRENÇAS ALHEIAS

ALAIN FINKIELKRAUT

A comunicação imediata venceu o tempo e o espaço. O intervalo entre o
próximo e o distante se reduziu. Há apenas alguns anos, esse fenômeno nos
causava júbilo. Encantávamo-nos por nossa moral ter se tornado ubíqua.
Víamos com emoção a técnica se colocar a serviço da ética.
A concordância entre o cosmopolitismo da telepresença e a exigência
cosmopolita nos parecia milagrosa: no momento mesmo em que o reconhecimento
da semelhança em todos os homens nos levava a denunciar o direito soberano
dos tiranos a massacrar suas minorias ou sua oposição à abertura de suas
fronteiras, a imagem indiscretamente democrática penetrava as mais espessas
muralhas. E essa abolição das distâncias nos parecia conduzir de maneira
bastante natural a uma aproximação entre os povos.


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Por que jamais surgiu uma manifestação no mundo islâmico contra os
sangrentos massacres em Nova York?
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Mas agora temos de enfrentar a globalização do ódio. Um convidado inesperado
se apresentou ao banquete da abolição de fronteiras: depois dos médicos,
farmacêuticos, enfermeiros, advogados e repórteres sem fronteiras, chegou a
era dos fanáticos sem fronteiras.
Na sociedade civil mundial que nossos melhores votos acalentam, a ingerência
desumana se torna cada vez mais peremptória e estridente.

Incapacidade de diferenciar
Uma ínfima minoria daqueles que, do Paquistão à Argélia, protestam contra as
charges publicadas pelo diário dinamarquês "Jyllands-Posten" saberia
localizar Copenhague em um mapa. Mas o que importa a geografia? Na era da
internet, o mundo inteiro é para todos, somos todos anjos, e aí está o
horror.
Quem são os responsáveis primordiais pela crise? "Os cartunistas e os
jornalistas que não quiseram temperar o exercício da liberdade de expressão
com o respeito às crenças", dizem muitos dos chefes de governo ocidentais,
acompanhados por numerosos intelectuais. Esses sábios se esquecem de que o
respeito às crenças e à liberdade de expressão são os dois lados da mesma
moeda.
Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença
que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse
desprezo.
Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas
vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de
desenhos que demonizam o Talmud [conjunto de interpretações das leis
mosaicas]. É a dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a
um só tempo a liberdade de expressão e o respeito às crenças. E é a essa
renúncia que as elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa.
A imagem que detonou a crise representa Muhammad usando um turbante em
formato de bomba. Imagem injuriosa, nos dizem. Um vínculo ofensivo, um
vínculo cruel, um vínculo difamatório entre o profeta e o terrorismo. Sem
dúvida. Mas esse vínculo não foi estabelecido pelos caricaturistas
dinamarqueses, e sim pelos adeptos da jihad [guerra santa]. Por que jamais
surgiu uma manifestação no mundo islâmico contra os sangrentos massacres em
Nova York, Madri, Mombaça, Bali e outras cidades?
Na verdade, as imagens de turbas furiosas saqueando as embaixadas
escandinavas são infinitamente mais obscenas, infinitamente mais
caricaturais, do que as charges vindas da Escandinávia.
Os crentes que se consideram ultrajados e caluniados por uma tal
representação de Muhammad reagem pedindo a morte daqueles que insultam o
islã. E aqueles que insultam o islã, aos olhos deles, não são apenas os
autores dos desenhos a que objetam -são também os governos dos países nos
quais esses desenhos foram publicados e os cidadãos desses países.
Essa incapacidade de diferenciar é o espírito do terrorismo. Matam-se
inocentes porque não existem inocentes, não existem nem mesmo indivíduos:
apenas espécimes. O anonimato reina: cada pessoa vale apenas por sua
proveniência, cada pessoa é um alvo.

Inimigos renitentes
Será que Bin Laden representava apenas uma amostra do que está por vir?
Somado à belicosidade nuclear da nova liderança iraniana e ao sucesso
eleitoral dos islâmicos militantes na Palestina, recentemente, e em breve,
com certeza, no Egito, essas manifestações delirantes nos forçam a
apresentar a questão. Para viver em um mundo pacífico ou para obter a paz,
não se pode abjurar todo espírito de conquista, confessar crimes e proclamar
a todos que não temos mais inimigos.
A prova é que o temos feito e agora se torna forçoso reconhecer que, apesar
de nossos esforços, nossos inimigos continuam determinados e renitentes.
Mas, atenção: esse "nós" não quer dizer apenas "nós, os franceses", "nós, os
europeus" e nem mesmo "nós, os ocidentais". É preciso que ele englobe
igualmente os muçulmanos tradicionalistas moderados, os muçulmanos laicos,
as mulheres muçulmanas emancipadas ou que aspiram a isso, os cristãos que
vivem em terras islâmicas.
O escritor Thomas Mann costumava dizer que Hitler não caiu como um meteoro
sobre o solo da Alemanha e que a Alemanha não podia, em conseqüência,
declarar ter extirpado o nazismo. Mas acrescentava que ele também era a
Alemanha. Pois bem, em lugar de tentar lisonjear os fanáticos por meio de
palavras pias e desonrosas sobre a alteridade e a aceitação, cabe-nos
afirmar agora, sem nenhuma hesitação, nossa solidariedade a todos os Thomas
Mann do mundo muçulmano.

Alain Finkielkraut é filósofo e professor de história das idéias no
departamento de humanidades da Escola Politécnica de Paris. É autor de "A
Ingratidão" (ed. Objetiva). Este texto foi publicado no "Libération".
Tradução de Paulo Migliacci.

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